domingo, 6 de maio de 2012

O jardim.



             Os primeiros raios de sol começavam a aparecer timidamente. A noite e a madrugada foram de forte chuva. Marina, enrolada em uma manta, toma seu café amargo . Com a caneca nas mãos e a fumaça do café quente se misturando a fumacinha que sai com sua respiração ela passa pelo corredor de chão de madeira e paredes brancas repletas de fotografias. Abre a porta e um grande jardim lhe sorri. Os pássaros aquecem as vozes, duas ou três borboletas brincam no ar. Um beija -flor se aproxima e a observa. Logo os olhares se cruzam e ela entende que ele parece querer lhe dizer algo. Talvez ele queira lhe dizer que as dores passam ou que a tristeza é uma constante ou não queira lhe dizer nada, apenas observa-la, apenas deixar que o olhar expressasse a mensagem que ela queira entender. Mas o fato é que naquele momento ela precisava mesmo ouvir algo. Já  faz um mês que se abrigou na casa grande para pensar na vida e  colocar a cabeça em ordem. A manhã de domingo de um mês atrás estava bem diferente daquela. Estava muito mais iluminada e mais florida. Era o dia do seu casamento. Decidiu se casar no campo, no jardim, perto das flores, do verde, coisas que gostava. Ela relembra os rostos das pessoas quando chegou. Eram olhares de... pena? Carinho talvez. Alguém lhe disse que ficasse ali pois havia acontecido algo e a primeira coisa que ela perguntou foi por Helena. Um rapaz disse que ela ainda não havia chegado. Uma mulher lhe disse para ficar calma. "Ficar calma pra quê?” Por que nessas horas as pessoas não conseguem ser objetivas e ir direto ao assunto? Ela se atrasou? Ela desistiu? O que aconteceu? Ainda ontem estava tudo certo. Uma mão pousou em seu ombro, era seu irmão, com lágrimas nos olhos.

Ao piscar o olho ela percebeu que o beija- flor estava ali, acompanhando seus pensamentos. O que ele queria lhe dizer? Ele então rodopiou em volta dela duas vezes e lhe deu um beijo.

Em um fim de tarde de  Fevereiro ela estava sentada a beira do lago pensando em  como a vida lhe pregava peças e que definitivamente não nasceu para ser feliz. Há tempos vem tentando encontrar o homem ideal, aquele que lhe amaria como precisasse, que lhe amaria por ser, por existir, sem nada em troca. Um amor sincero, puro. Mas como era difícil. Foi quando olhou para o lado e viu aquela mulher magra, de cabelos negros, pele branca e meio corpo no lago. Aquele fim de tarde não era propício para alguém tomar um banho e ainda mais de roupa. Estava um tempo frio. Ela colocou a mão na água e percebeu que estava gelada. O que aquela mulher estava pensando em fazer estava bem longe de ser um simples banho de fim de tarde.
- Ei, moça. Não acha que a água está fria demais? - acenou dando pequenos pulinhos para chamar a atenção.
Helena continuou parada, olhando pra frente, cabelos ao vento. Não fez questão de olhar para ver quem estava lhe chamando. Então, deu mais dois passos para frente.
- Moça. Ei! Está começando a escurecer, tem certeza que quer ficar ai? - gritou, fazendo concha com as mãos para ampliar a voz.
Mas Helena não deu importância e deu mais dois passos pra frente.
"Não vou ser inconveniente. Se a moça resolveu pensar na vida, vestida e dentro d'água, é porque certamente quer fazer isso. Cada um pensa na vida da forma que quer."- pensou.

Os caminhos dos amores fracassados sempre se cruzam. E assim como Marina, Helena também pensava que não nasceu para ser feliz. A vida não estava sendo justa com ela. A traição de Caio, a perda da mãe, as brigas em família por inventário, tudo aquilo havia era tão desgastante. Era muita coisa pra pensar e pouco tempo, pouca vontade. Ninguém em seu meio percebia que ela morria aos poucos. Não comia, mal saia de casa. Ruídos de discussão vinham de todos os cantos da casa e invadiam seu quarto e ela, com o travesseiro em volta da cabeça, tentava fingir que não ouvia tudo aquilo. Cansada, saiu decidida a por um fim em todos os problemas, se atirando naquele lago e pondo fim a uma vida que não interessava a ninguém.

- Não sei o que você pretende fazer, mas seja o que for farei também.
Era a voz de Marina ao seu lado, dentro d'água.
- O que você está fazendo? Não percebeu que eu quero ficar só? Será que não tenho o direito a me matar?
- Tem, claro que tem. Mas uma vez alguém me disse que boas ideias deviam ser sempre compartilhadas e achei essa sua ideia muito boa, tanto que me deu vontade de morrer também.
- E porque você quer morrer?
- Por que um dia isso vai acontecer e não sei se estou disposta a esperar tanto tempo. Esperar a morte significa sofrer enquanto espera e eu não sei se quero sofrer mais.
- Nem eu!
As duas se olham.
- E então... como é saber que vai morrer daqui a pouco tempo? -disse Marina.
- Me conforta. Acho que essa será a coisa mais sensata que farei desde que me entendo por gente.
- É... sabe que eu também? Ah, a vida é tão... sei lá!
- Tão sei lá?
- É. Sei lá!
As duas sorriem e Marina pode ver como o sorriso de Helena é lindo.
- E então?- Marina olha pra Helena.
- Então o quê?
- Não vamos pra frente?
- Ah, sim.
As duas dão um passo à frente.
- Como você espera morrer?- diz Marina.
- Ah, não sei bem. Sabe... é a primeira vez que faço isso. Não sei se submerjo com o nariz tampado assim. -ela prende o nariz com os polegar e o indicador e fala com voz fanha. - O que acha?
- Com essa voz? Acho que não rola muito não gata! -Marina dá uma piscada e um sorriso, o que faz Helena sorrir também.
- E então? - Marina olha para Helena com as sobrancelhas levantadas.
- Então??
- Vamos morrer eu não vamos?
- Ah, vamos! Vamos dar mais dois passos?
- Pode ser.
A água fria bate nos seios de Marina.
- Nossa, está bem gelada mesmo. Ainda está na sua cintura, o que significa que eu vou morrer primeiro.- diz Marina dando um risinho meio apavorada.
- Pra mim isso quer dizer que você é bem mais baixa que eu.
As duas riem. De repente, silêncio. E as duas ficam assim por um tempo.
- Não sei se é um bom momento para se apresentar mas eu me chamo Helena.
- Marina!
- Me diz Marina. Qual a último momento que recorda antes de morrer?
Marina pensa por um momento.
- Pode ser um imagem? Bem, acho que o meu diário. Era rosa e tinha um coração no meio. Quando ganhei de presente de aniversário eu achei cafona mas... bem, ele acabou virando meu melhor amigo e o único que de certa forma me entendia. Acho que nós, garotas, temos um pouco disso. Essa coisa de escrever tudo que pensa. Volta e meia eu o folheio para lembrar dos tempos onde sofrer por amor era o fim de tudo para um garota. Mas no fundo a gente sabe que ainda muitos amores viriam. Diferente de quando se é adulta. Parece que cada amor mal resolvido, cada decepção, tira de você um pedaço. Vai te deformando, te decompondo. E você? O que lhe vem a mente?
- Eu estava aqui ouvindo você e vendo seu diário rosa, cafona.- rir- Bem, deixa eu ver. A minha mãe morreu há um tempo e eu fui pra casa de uma amiga pra colocar a cabeça em ordem. É uma casa grande, no meio das montanhas. E tem um jardim tão lindo. Eu estava lá, sentada na grama, acho que pensando em nada, porque quando se tem tantas maravilhas em volta você não consegue pensar em nada, pelo menos comigo.
- Comigo também- disse Marina.
- Pois é. Então do nada me apareceu um beija- flor, ficou parado batendo as asas e me olhando. Eu tive medo, pensei que a qualquer momento ele iria me bicar, mas não. Ele me olhou, como se quisesse me passar uma mensagem. Me chamou a atenção a beleza daquele pássaro. De como é gracioso e tão... sensível. Eu pensei que  poderia ter vindo ao mundo como um beija- flor e não como ser humano. E desejei de certa forma que, quando eu morresse, eu me transformasse num. Na verdade eu sei que isso é loucura. Mas a vida é feita de loucuras não é?
- É. As loucuras que fazem caminhos distintos se cruzarem. E você, que queria morrer e virar beija - flor, imaginou um dia que sua morte seria num lago sujo em companhia de uma desconhecida?
- Sabe que não? Eu sempre desejei mesmo é encontrar um amor. Assim, mesmo sabendo que um dia a morte viria, por que ela sempre vem, eu estaria gastando o tempo ao lado de alguém que valeria a pena.
- É... eu também. Vem cá, você não acha que esse lance de morrer aqui não é meio ruim? Sei lá. Encontrarão nossos corpos na margem, cheios de lama e lixo. Eu proponho uma morte diferente.
- Como diferente?
- Ah não sei. Gastar o tempo ao lado de alguém que vale a pena até  que ela venha por vontade própria.
Helena sorri.
- Bem, quem sabe não é uma boa proposta?

Marina não percebeu quanto tempo passou no jardim. Duas, três horas. Quando voltou a si, viu o beija- flor ali, na frente. E percebendo meio que por intuição que ele a chamava para algum lugar, ela o seguiu. Entrou mata a dentro e chegou em um lugar que ainda não conhecia. Um lugar com árvores altas e uma gruta escondida por trepadeiras. O beija- flor entrou no local e ela  foi atrás. Ao abrir a imensa cortina de trepadeiras cobertas com flores, sorriu ao ver milhares de beija- flores de todas as cores dançando no ar e irradiando um brilho que não há como descrever. Estaria ela sonhando? Não se sabe. Mas estava ali. Pisou em flores e percebeu que no chão havia um desenho. Flores rosas e amarelas desenhavam um coração com fechadura, como o seu diário. O lugar onde guardou as emoções e sentimentos puros da juventude.

Helena ia a frente em sua bicicleta com cestinha. O tempo estava bom e dali a dois dias elas iriam se casar. Estava bem corada e nem lembrava a moça triste de um ano atrás. Marina vinha devagar, nunca teve fôlego para andar de bicicleta, nem gostava. Só estava ali para agradar Helena, pois quando há amor, a gente entra mesmo sem querer nos hábitos do outro.
- Marina, anda logo! Nessa velocidade a gente não chega nunca!- disse Helena em pé, segurando a bicicleta e batendo o pé direito.
- Calma. Não precisa presa. Lembre que se não fosse por mim você não estaria aqui hoje.
- Vai jogando na minha cara vai!
Quando Marina se aproximou ela lhe deu um beijo no rosto.
- Minha tartaruga.
- Vamos parar de pedalar um pouco e andar? Estou cansada.
Marina desceu da bicicleta e as duas seguiram andando.
- Helena... por que é tão importante pra você que a gente veja o por do sol hoje? A gente tem tanto tempo pra isso.
- Será que temos mesmo? A gente nunca sabe. Este ponto aonde vamos é o melhor local para ver o por do sol, vai por mim. Amanhã a gente não vai se ver, eu preciso ir na minha cidade pegar o tal documento e só volto horas antes da cerimônia.
- Não sei pra quê este documento.
- Sei ele a gente não casa!
- Eu quero ir com você!
- Não, você precisa ficar pra organizar o que falta.
- Essa viagem me deixa preocupada.
- Não precisa se preocupar. Eu vou sempre te mandar uma mensagem. Ei, eu não vou morrer se é isso que você pensa.
- Não! Nem fale uma coisa dessas!
- E mesmo se eu morrer, eu mando uma mensagem pra você de alguma forma.
Marina para.
- Não fale mais isso tá bom? Sabe que eu fico assustada.
- Estou brincando. Agora, sobe nessa bike e vamos, se não a gente perde o melhor espetáculo do mundo. Ah, Marina...!
- Fala!
- Escreva esse momento no seu diário. E escreva uma frase entre aspas. " Onde ver brilhar, lá estou. Onde houver um beija flor meu espirito estará, sempre, a te olhar."
- Nossa. É lindo.
- Acabei de pensar. Vamos?

Marina está sentada no degrau que dá para o jardim com seu diário aberto. Um beija flor a observa de longe enquanto a tarde vai morrendo, aos poucos.

Elmo Ferrér

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